segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Só letras de pedra


Publicado por Mário Hélio em 31 Out 2009 | sob: Artigos

Ele era magro. Mas não parecia sempre de perfil, como na descrição de Vargas Llosa para o Conselheiro. Era guenzo como os sobrados-severinos do Recife, como os tantos rios de Pernambuco que parecem estar por um fio. E/reto. Nem alto nem baixo.

Fugiu da poesia como o diabo do lirismo. Não houve jeito. Enredou-se nela. E a fez. Como quis. Arquitetura. Engenharia. Pintura. E música? A palo seco. Como o seu nome comprido/cadenciado em pedra, em sucessões aboiadas em ós e ás e és: João Cabral de Melo Neto.

De tanto se criticar e reelaborar tudo o que construía, projetava, pintava com palavras até parece o Heautontimoroumenos (o carrasco de si mesmo) de Terêncio.
Tudo o que escreveu foi pensando-o como “cosa mentale”. Não admira que uma dor de cabeça o haja perseguido – obsessivamente – por quase toda a vida. Muito jovem ingressou na carreira diplomática. Ganhou – perdeu – o mundo; perdeu – ganhou – a sua província para sempre como visgo na memória.

1920. Nasceu no Recife, cidade cheia de vaidades e pudores como logo notaram e espelharam seus primos i-lustres Manuel Bandeira e Gilberto Freyre.

Pelos vinte anos, a sua poesia floresceu (floresceu? Como as flores meio apodrecidas de Baudelaire e as suas antiodes). Pedra do sono, Os três mal amados e O engenheiro são seus três primeiros livros. Meio afrancesados num tempo em que a vida literária brasileira era pouco mais do que isso. Mas veio a poesia com um cerebralismo mais à Valéry que à Mallarmé (apesar deste constar primeiro como epígrafe). Embora haja muita coisa “datada” ali, o que escreveu nesse tempo já insinuava a beleza árida que por fim vai marcá-lo.

A Espanha o redefine. Na verdade, o define. Psicologia da composição, O cão sem plumas, O rio são degraus já muito sólidos do seu antilirismo, pleno de emoção (na verdade, prenhe de uma tensão de corda a ponto de arrebentar-se; represa que já não cabe em si de tão grávida).

Isso se enriquece e se concretiza ainda mais em Paisagens com figuras, Morte e vida severina e Uma faca só lâmina. É a Espanha com seus touros e cantaores que lhe transplanta a voz e enche a sua boca de pedras e substitui seus ossos por facas. A voz e os ossos da poesia com fôlego de fogo em Quaderna, Dois parlamentos, Serial.

Política, metalinguagem, erotismo, humor – palavras-chaves de sua poesia. Pode-se ainda soletrar de cor os nomes dos seus outros livros: A Educação pela pedra, Museu de tudo, A escola das facas, Auto do frade, Agrestes, Crime na calle Relator, Sevilha andando e Andando Sevilha.

Qual o seu melhor livro? As massas (se é que as há para a poesia, como desconfiava Maiakovski) verão na secura de Morte e vida severina o seu biscoito mais fino. A crítica talvez diga que é A educação pela pedra. Cada um dirá do seu. Em todos os melhores, de algum jeito, respiram aquela Espanha-Pernambuco e aquele Pernambuco-Espanha que como os rios Capibaribe e Guadalquivir integram a mesma “maçonaria”, pois, ele, que se propunha tão no extremo do anticonfessional, certa vez confidenciou em versos:

“Só duas coisas conseguiram/ (des)feri-lo até a poesia:/ o Pernambuco de onde veio/e o aonde foi, a Andaluzia./ Um, o vacinou do falar rico/ e deu-lhe a outra, fêmea e viva,/ desafio demente: em verso/ dar a ver Sertão e Sevilha.”

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