terça-feira, 17 de novembro de 2009

PASSAGEIRO


Douglas Menezes

Ganha corpo o movimento. Já o gigante respirando quente. Uma respiração, no entanto, fria, insensível ao que possa haver de humano. Também é máquina a gente que escorrega pra lá e prá cá/ todo mundo se olhando; ninguém se vendo. Um estúpido medo da sinceridade. Mesmo eu, observador pretensioso, corro a vista para não encontrar uns olhos que amarrem os meus. Ninguém espelha a alma de graça.

De vagão em vagão, acho sincero o aleijado que expõe a realidade. Penso: sou o aleijão embutido. Evidente o exagero, penso de novo.

Respira fundo o gigante. Para um pouco. Remoçado parece bicho enfurecido. Corre querendo ultrapassar o tempo. Retomo as observações, inúteis e necessárias. Vozes passam. Tanta gente e a certeza da solidão. Absorvido como estou, o ruído é silêncio. Verde e azul forte lá fora. Mas eu sino no olhar uma paisagem cinza: murchas as árvores. Queimada a cana. Escuro o céu.

Várias vezes parando o gigante. A cabeça, porém, é movimento. Complicado, como o entra e sai nas estações. O cheiro denso da gente está em tudo. O cheiro diz que está perto. Cada vez mais perto, a sensação do astronauta na lua.

É nesse momento que o deserto se faz por completo. Imagino que todos me olham, porque sei que estou distante. Pressinto a dissipação do formigueiro, quero ser o último. O gigante silencia. Breve retornará, o mesmo roteiro será feito. O mesmo caminho: monótono e cheirando a mofo. Invariável será a paisagem. Como eu toda vida. São cem quilômetros, todos os dias, de solidão.


Douglas Menezes é membro da Academia Cabense de Letras.

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