segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

SOMBRA, SOMENTE.


Douglas Menezes

Não. Aqui o tempo não vai parar nunca. As sombras e as chagas permanecem expostas no interior. O apagar do tempo, a idéia deles. Mas no pensamento penso eu. E aí, suas armas são inúteis. A reflexão sobrevive ao suplício físico, mesmo sendo doloroso também o acordar, o recriar aquilo que a alma deveria sepultar para sempre.

Embotada muitas vezes, a mente. Difícil o raciocínio. Nervos desgovernados, alucinações que tornam o pensar algo penoso e caótico. Todavia, revolver é preciso, ser conciso, rápido, papel difícil, luz nenhuma, quase. Passos ouvidos, se aproximam, se afastam. A pressão constante que atinge meses. Seguro, com sofreguidão, o fio tênue do pensamento. Agora ou nunca. Estar vivo daqui a pouco, duvido. Bater mais, nem precisam, questão de momento.

Então, o retorno é feito, segundos, minutos, horas, dias, dias, meses, anos. Impossível precisar o momento certo. Identificar o necessário, apenas isso, para que o juízo se torne leve e amenize a dor dessa consciência quase insana, débil como cabeça de criança.

Os olhos fixos no papel amarelado. Nele, a sombra ganha contorno. E devagar, distingo o sorriso dela, que me parece se destacar do restante da sombra.. É claro, o riso, é clara a pele já visível. Jeito de menina travessa a bailar sem música. Toda a vez assim, quando tudo saia a contento. Tempos escuros aqueles, mas ela clareava a vida, e vislumbrava o dia, mesmo na noite mais escura.

Confusão total, cérebro ocluso, remorso irreversível, dor maior, alma fraca que desde cedo traz o estigma do medo e da angústia sem sentido. Lama, meu ser agora, verme pior, existir não pode. Logo ela, meu Deus.

Preciso, no entanto, retomar os fatos, recolher pedaços de acontecimentos, pôr em evidência de novo, um passado mais que presente. Um passado que expressa a ruína a que me acho relegado.
De novo as palavras ganham vida. No papel amarelo dançam como se quisessem agredir-me. Embaçada a vista, tonta a cabeça, e ela que me achou estranho naquele dia. Estranho dia, aquele. Dia do fracasso maior. Nublado o tempo. Escuro quase, mesmo sendo manhã. Sua voz franca, direta. Explicando, detalhando a ação que jamais aconteceria. Didática, ela. Inteligente, ela, companheiros atentos: apenas eu nervoso. Já a marca da atitude sórdida. Um fraco, nenhum respeito à mulher que amava. Ela notou meu embaraço, mãos geladas, tensos os nervos. Tardio o arrependimento. Duas da tarde a ação. Tarde demais, pensei. Ação nenhuma. Só daí, a pouco, a cena. Inútil tentar justificar o ato. Inútil a existência, agora. Que apodreça aqui, pois sou igual a esse a ar fétido, nascido morto deveria ter.

Treme o papel amarelo. Treme as mãos, no relembrar a vergonha, a indignidade em forma de gente. Notou meu embaraço, ela. E, ainda na conversa, chegou-se a mim. Bem perto ela, gostoso seu hálito. Descansaram um pouco, os companheiros. Chegou-se a mim, consciente. Intuição perfeita. Lâmina seus olhos, ultrapassando essa alma doente. Intuição perfeita: por que, Carlos? Por quê? Os olhos, os meus, circulavam atônitos. Por que, Carlos? Embrulhado, o estômago, vomitar, necessário. Paralisado. Era minha mãe, olhar severo.: você, Carlos. Você, Carlos, sempre mente. Seu irmão, Carlos, você o acusou injustamente, um homem não age assim. Um homem, não.Mas o que sou eu? O que sou eu, além desse poço imundo que envergonha a condição humana?

E tempo não houve. Afastada a mãe, mal teve tempo ela, última censura pronunciar não pôde, pois bafejava a morte, que chegou rápida, competente. Eles, os companheiros, caídos. Ela caindo, devagar, altiva até mesmo no instante final. Bonita, ela longos os cabelos que cobriam o seu rosto, longa a noite instalada em minha vida.

Mãos que me arrastavam. Mãos que me trouxeram aqui para esse caos que não termina, para essa vontade de desintegrar-me, de pôr termo à agonia, que, passando pelo sacrifício dela, definitivamente alojou-se em mim, um ser tão-somente sombra. Pálida sombra da covardia.

*Douglas Menezes é membro da Academia Cabense de Letras

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