quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A RUA E ELE


Douglas Menezes*

A cidade dorme com ele. A marquise é o teto que a vida negou. Nevoenta a madrugada cabense. A cidade, já cosmopolita, silencia junto à chuva fina. Tão silenciosa quanto as pessoas fechando os olhos e ouvidos para aquele corpo encolhido sob papelões rasgados. Rasgada a roupa. Rasgada a carne pela violência mal disfarçada. Ao lado, a garrafa alimentando a ilusão. Solvente, cola, sei lá o quê, entorpecendo o sofrimento. Talvez sonhe com uma coisa que não virá. Talvez sonhe com um futuro nunca a realizar-se. Talvez nem chegue ao presente, tirado da vida assim, ao acaso. Ou ao sabor da crueldade planejada.

Nem dez anos, ele. Tenra idade, maduro precocemente. Horas depois,a rotina. Zanzando, furtando, gritando, rindo, chorando, cantando, existindo e morrendo, quem sabe.

Nome não tem. Só apelidos, desde que surgiu no mundo. Ele não nasce, surge: ventola, maromba, pivete, cacimba, negão. Vez por outra, um gesto de compaixão: um pão mal-dormido, igual a ele. No mais, o ódio pela maldade plantada, latente. Não teve tempo de ser bom. O cotidiano impondo-se monótono, todo dia igual. Talvez uma arma na mão, posta como um amuleto às avessas, selando seu destino. A antítese matar ou morrer passaria a evidenciar os passos da sua vida.

Um leve movimento indica a manhã próxima. Sair cedo é preciso. A claridade um aviso, não muito tempo pode passar ali. A manhã chega. A existência dele,no entanto, é noite. Uma arma na mão, talvez. A perversidade que não pôde nunca expressar ternura.

A cidade acorda. É linda a cidade acordando, com os pregões e os operários barulhentos. Envergonha-me observar o pequeno corpo ainda estendido sob o cimento, seu lar. Daqui a pouco, escorraçado, aumentará a legião de miúdos viventes, invisíveis para uma sociedade que olha, mas, insensível e hipócrita, desumana até, insiste em não ver.

*Douglas Menezes é membro da Academia Cabense de Letras.
Junho de 2008 .

Um comentário:

  1. Todos os dias vejo esta cena nas ruas de maceió
    é uma triste realidade, tenho conhecimento que muitos tem familia mas preferem esta vida, muitos voltam as suas casas depois retornam as rua.

    Rubens Parizio
    http://minhasartesrubensparizio.blogspot.com/

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