segunda-feira, 7 de junho de 2010
NEM UMA BALA PERDIDA
NEM UMA BALA PERDIDA
Roberto Menezes
Noite de domingo passado, 30 de agosto. Ele chegou à TV Bandeirantes em São Paulo num jipe tipo militar. O jipe estava cheio de adesivos: "EnDIREITA BRASIL", "GENERAL HELENO ESTAMOS COM O SENHOR", "ARMAS NÃO MATAM PESSOAS.PESSOAS MATAM PESSOAS".
O "Canal Livre", da Band, entrevistou ao vivo, com muita competência e profissionalismo, uma das mais execráveis figuras da história brasileira: o Cabo Anselmo.
Cabelos brancos e finos, fala mansa e ar de vítima, Cabo Anselmo não se abalou nem quando falou da mulher grávida, a bela e valente Soledad: assassinada, enquanto seus protetores o levavam para o aeroporto. Adeus, Recife. O sangue nas mãos se lava com os lenços perfumados dos banheiros de avião. Lá embaixo, jovens mortos com 14 tiros na cabeça cada um (um número cabalístico?). E Soledad entre eles, com o filho que nasceria dentro de dois meses. O filho de Cabo Anselmo.
Janeiro de 1973. Demissão de toda a redação da sucursal Recife do Jornal do Brasil, inclusive o diretor Bernardo Ludermir. O interventor Amaury Mattos alegava interesses comerciais que a empresa JB queria ampliar em Pernambuco e nossas matérias negativas prejudicavam. Inclusive aborreciam os usineiros (porque davam voz aos trabalhadores do campo) e aos militares (porque mostravam o Nordeste que eles queriam ocultar). Eu era o Chefe de Redação, substituindo Nagib Jorge Neto, demitido um mês antes.
Na saída do jornal, para onde não voltaria mais, o motorista José Félix me entrega um bilhete de uma moça. Era a companheira Rildete, do PCB, marcando um encontro. Morena alta, esguia, entre 22 anos e 24 anos, nariz graciosamente arrebitado, olhar suave, fala doce, uma das autênticas militantes do verdadeiro movimento revolucionário: o que queria um Brasil socialista. Nunca soube seu verdadeiro nome. E ela me conhecia como Pedro.
Encontramos-nos na sala de espera do Cinema Glória, no bairro de São José. Um cinema de filmes pornôs onde homens lotavam a sala para transar com outros homens enquanto o sexo explícito corria solto na tela. Não sei se ainda hoje é assim. A sala de espera, com um sofá e duas poltronas, ficava vazia. O fuc-fuc era lá dentro.
Eu e Rildete pudemos conversar tranquilamente. Para quem nos visse, era um rapaz feio e magro como um poste, acertando preço com uma jovem e bela prostituta, das muitas que rondavam o cinema Glória.
Rildete fulminou de cara: "A gente não vai mais se ver. Ou talvez por muito tempo. Vou passar para guerrilha”. Retruquei que ela pensasse bem. O povo brasileiro tinha fraca consciência política, a ditadura estava jogando duro com os mitos do nacionalismo e tinha todo o apoio da mídia que o povo vê, ouve e lê. Era preciso organizar antes todas as camadas sociais e apostar na luta pela democracia. Tem que ser um amplo movimento, nunca a iluminação de grupos isolados.
Rildete disse que o irmão dela tinha morrido a três meses num choque com as forças de repressão. E ela estava convencida de que a morte dele negava o Brasil alienado para afirmar o Brasil dentro de uma pátria maior, latino-americana.
Agora, entre os gemidos eróticos que vinham de dentro do cinema, eu olhava Rildete e me vinha na cabeça à personagem da tragédia grega Antígona, de Sófocles. Para enterrar o irmão e mostrar a injustiça das leis, Antígona caminha para a morte. Para reviver o irmão e revelar a injustiça e a criminalidade dos poderosos, Rildete como Antígona, já estava "do outro lado".
Sem perder a suavidade, era só a força da escolha. E sem perder a doçura, a voz tinha o timbre da decisão. O olhar e a voz de Antígona quando desafia Creonte que a condenara. E que marcha altiva, para a sepultura, na peça de Sófocles.
Fevereiro, 1973. Dez dias antes que eu partisse para Salvador (que será tema de outro artigo que envolve muitos jornalistas pernambucanos), e de lá para a Argentina e o Chile de Allende, soube pelo companheiro Resende que Rildete estava morta. Duas balas, uma em cada olho, uma bala na testa, outra na nuca.
O olhar da Antígona pernambucana deve ter ofuscado seus assassinos.
Tudo isso me passava pela cabeça ao ver Cabo Anselmo elogiar o profissionalismo policial do coisa ruim Sérgio Fleury, confirmar que realmente guardava poemas que Fleury fazia entre uma e outra sessão de tortura.
Fleury tanto torturou Frei Tito que o frade exilado na França, se matou. Deixando escrito que não conseguia esquecer, dia e noite, o rosto do Mal em Si, o rosto de Fleury, protetor do Cabo Anselmo.
Cabo Anselmo disse na TV que não lhe restava opção. Fleury foi direto: ou colabora com a gente, ou morre, desaparece. Será que isso deu poema? Os tenebrosos poemas do Mal em Si?
E quantos sofreram e não delataram? Temos o exemplo da Dilma Rousseff, apontada nos relatórios da CIA, como a Joana D’Arc brasileira: 22 dias consecutivos de choques elétricos e outros tipos de tortura. E não confessou nada, nem delatou ninguém, segundo os relatórios dos próprios agentes dos Estados Unidos.
E o pior dedo-duro da história brasileira, ainda ficou amigo pessoal até hoje, do policial Carlinhos Metralha, um dos maiores participantes na repressão e assassino de militantes de esquerda.
Cabo Anselmo quer indenização e reaver sua identidade, seu RG. Ele negou qualquer compromisso com o jipe cheio de adesivo, mas admitiu que logo que recobrasse a "cidadania" poderia escolher o campo ideológico.
Escolher o que, traidor? Fique tranqüilo, Cabo Anselmo. Você vai reaver sua identidade, vai receber uma boa grana, vai poder andar na rua e fazer o proselitismo das idéias dos seus "grandes amigos", que são também as suas idéias.
Imaginem uma Dilma Rousseff ou uma Marina Silva no governo, batendo de frente com os grupos que sempre roubaram o Brasil e são os responsáveis pela miséria da maioria dos brasileiros.
Cabo Anselmo estará no Congresso como deputado, eleito com a força da grana dos amigos torturadores e assassinos? Ou vai continuar oculto, conspirando para derrubar Dilma ou Marina, acabar com as organizações populares, exterminar os comunistas, e ajudar os norte-americanos que querem implantar uma base militar no Recife, depois da Colômbia. Enfim, vai realizar o grande objetivo de enDIREITAR de vez o Brasil?
Vendo aquele símbolo da morte e da traição, me lembrei da Antígona guerrilheira, a querida companheira Rildete, que nos deixou tão cedo, da solidão de Soledad morrendo com o filho na barriga, o filho do "homem" que a delatou. E senti vergonha de estar vivo, de usar da lógica medrosa e do "bom senso" para tentar convencer uma companheira que resolvera fazer a travessia para um ideal maior.
No Brasil de hoje, as balas parecem querer sair sozinhas das armas. Milícias, traficantes, assaltantes, matadores de mendigos, casais que se matam, jovens que se matam, balas perdidas à procura de corpos desatentos. Nunca se matou tanto como no Brasil de hoje.
As armas fumegantes parecem atender à inquietação das balas.
Mas Cabo Anselmo continua vivo.
* Roberto Menezes é jornalista.
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