quarta-feira, 5 de maio de 2010

O LEGADO DE CAMUS



Estamos no ano do cinquentenário de morte do escritor franco-argelino Albert Camus (1913–1960). Talento reconhecido em todo o mundo, Camus é um dos mais representativos escritores do século 20. Nascido em uma família pobre na cidade de Mondovi, na Argélia, então colônia da França na África, teve uma vida sacrificada e dura. Perdeu o pai (francês) quando tinha menos de um ano de idade, vitimado em uma batalha da 1ª Guerra Mundial. Foi criado pela mãe (espanhola), que não sabia ler nem escrever, e uma avó extremamente austera, em meio a uma condição que contemplava apenas as necessidades essenciais de sobrevivência, num subúrbio da capital Argel. Graças à ajuda de um mestre (Jean Grenier) graduo-se em Licenciatura em Filosofia, mas quando estava prestes a começar a docência contraiu tuberculose.

A doença o acompanhou o resto de sua breve vida e a frequente ameaça de morte o marcou profundamente, refletindo de maneira significativa na sua visão de mundo e na literatura que proferiu. Camus faleceu aos 47 anos em um acidente de carro, no sul da França. Entre seus livros mais conhecidos estão: O Estrangeiro, escrito em 1942 e traduzido para mais de 40 línguas; A Peste, de 1947, e A Queda, de 1956. Particularmente, destaco ainda na obra do vencedor do prêmio Nobel da Literatura de 1957 O Homem Revoltado.

Em O Estrangeiro, Camus nos deu uma história tensa, dura, intensa. Como era próprio no autor, é marcante o sentimento existencialista do personagem principal, sua solidão, dúvidas e o quase surrealismo de seus conflitos. Ainda que o livro seja uma obra de ficção, o personagem é inerente ao escritor, com a clara proximidade entre seus pensamentos e valores em relação à sociedade em que vive. A Peste é uma alegoria da guerra e da ocupação nazista e, mais amplamente, da condição humana, através da descrição de uma cidade ameaçada pela epidemia. Em O Homem Revoltado a reflexão existencialista acaba por descobrir que só revoltando-se pode o homem dar sentido a um mundo dominado pela “completa ausência de sentido”. “O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites... Não espere o juízo final. Ele realiza-se todos os dias”, são frases que marcam bem o pensamento do escritor.

Albert Camus questionou, em sua obra, assuntos com os quais seguimos nos debatendo. O escritor não queria ser apontado como um filósofo, mas filosofou sim - e muito -, imprimindo admirável comprometimento com a busca de um caminho ético na existência humana. Camus procurou sempre o real sentido da vida e o grande valor do agir nos indivíduos. Expôs as inquietações fundamentais da condição humana e os delineamentos de um itinerário humanista conciliado à experiência cotidiana da dignidade.

Até mudar-se para a Paris, onde começou a fazer parte da resistência contra os nazistas e fundou o jornal clandestino “Le Combat”, Camus viveu na Argélia. Apesar das dificuldades econômicas impostas pelo colonialismo, sua terra natal lhe extasiava com suas belezas naturais, seu romantismo, e a poesia que brotava de sua gente mestiça. Apaixonado pelo céu, pelo mar e pela exuberância feminina, Camus se deleitava ao ver as mulheres a amassar os absintos. Em seus romances a Argélia resiste insistentemente como uma bela e sedutora paisagem de fundo.

Enquanto jovem, o escritor foi o goleiro da seleção universitária. Conta-se que um bom goleiro. Um dos fatos que mais o impressionou quando da sua visita ao Brasil, em 1949, foi o amor do brasileiro pelo futebol. Tanto que uma das primeiras atitudes que Albert Camus teve ao pisar no Brasil foi pedir para que o levassem para assistir a um jogo. E seu amor pelo futebol o acompanhou por toda a vida. “O que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem, devo ao futebol”, costumava dizer Camus.

Recentemente, por conta do cinquentenário de morte do escritor, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, acabou por lançar uma grande polêmica no país ao propor a transferência dos restos mortais de Albert Camus para o Panthéon, monumento em Paris onde já se encontram os mausoléus de célebres personagens da literatura francesa, entre eles Voltaire, Rousseau, Victor Hugo e Emile Zola. Para os críticos, a proposta de Sarkozy é uma tentativa de apoiar-se politicamente do legado de Camus, que é uma figura mítica da esquerda francesa. Parece que a tentativa do presidente francês não sensibilizou os filhos do escritor, os gêmeos Jean e Catherine, que acaba de publicar o livro Camus, Mon Père (Camus, meu pai), ainda sem tradução para o português.

Meio século após sua morte, quando vivemos em um mundo marcado por irracionalidades, intolerâncias e fanatismos, lembrar e recomendar a leitura desse extraordinário escritor é fundamental para que possamos sempre buscar um melhor entendimento sobre a aventura existencial do ser humano. Sua obra nos deu uma admirável lição de autenticidade. Nunca esqueci uma frase de Albert Camus que li num monumento em Tipasa, quando estive na Argélia pela primeira vez: “Aqui, eu conheci a dor de viver e a glória de amar”.

Antonio Campos
Escritor e Advogado


© Jornal do Brasil, JB Ideias, 03 de maio de 2010

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