segunda-feira, 24 de maio de 2010
MEMÓRIA DE UM JOVEM COMUNISTA
Roberto Menezes
Eu era bancário na cidade do Cabo de Santo Agostinho, a 30 quilômetros do Recife, onde nasci, cresci e estudei o ginasial. Tinha 19 anos e já dois anos de militância no Partido Comunista Brasileiro – o PCB .
Naquela noite de 30 de março de 1964, vieram dois companheiros do Recife, que sempre participavam das reuniões da célula cabense. Um deles, o mais radical, tinha o codinome de Américo, e anos depois deixou o Partidão e entrou na luta armada. O outro atendia pelo codinome de Nelson. Nunca soube que caminhos ele seguiu.
Decidimos não fazer reunião nem no Sindicato Rural, nem na casa de ninguém. A situação do país era grave e não se tinha uma visão exata da correlação de forças. Precisávamos discutir qual seria a nossa ação nos próximos dias. E a reunião teria que ser num lugar afastado e mais seguro.
Escolhemos a velha estrada que ligava a cidade à Destilaria Central Presidente Vargas.Na época, uma estrada de barro batido, cercada de mato, paralela à BR-101. Saímos andando, noite de lua clareando o caminho, e decidimos fazer a reunião debaixo de uma velha jaqueira. Uma árvore que tinha fama de mal assombrada e que ficava exatamente no meio da estrada,entre Cabo e Destilaria. Ali seria o lugar seguro porque todo mundo evitava passar pela jaqueira à noite.
Saímos da cidade e fomos andando até lá. Eu, Américo, Nelson, e mais três comunistas :o jovem Murilo Lages; o velho vendedor de jornal e antigo militante Manoel Amaro, que já tinha sido preso e torturado várias vezes pela polícia; e Luís de França, camponês de uns 50 anos, infiltrado pelo PCB nas Ligas Camponesas de Francisco Julião.
Na jaqueira, os companheiros do Recife explicaram a situação, que os militares estavam se rebelando contra o Presidente Jango e que o então Comandante do IV Exército, general Justino Alves Bastos, estava vindo de reuniões em Brasília e no Rio.
Acreditava-se que os mineiros e paulistas iam tentar derrubar o presidente João Goulart, mas o general Justino talvez defendesse a legalidade. O camponês Luís de França informou que o Sindicato estava cheio de caixas de bala, mas nenhum fuzil nem revólver. Os companheiros do Recife ficaram de ver isso e marcamos a próxima reunião para as duas da tarde do dia seguinte. Agora precisavam voltar para o Recife, pegando o último ônibus do Cabo para a capital.
De repente, uma voz rouca e possante, interrompeu a reunião, cantando : "Noite alta/céu risonho/ minha amada em doces sonhos" . Uma sombra saiu detrás da jaqueira e Américo, o mais radical, gritou :
-É uma alma!
Correu comunista pra tudo que é lado.
Era apenas um velho, talvez um mendigo ou até mesmo um camponês, que estava curtindo a bebedeira sentado no pé da jaqueira, do lado contrário ao lugar onde estávamos.
Acabamos de correr uns poucos metros e vimos o velho com seus trapos e um saco nas costas. Ficamos ofegantes e silenciosos, olhando pra ele. O velho nos acenou, dando um "cháu", como se diria hoje. E continuou andando na direção da Destilaria,enquanto nós voltávamos para a cidade. Ainda silenciosos.
A voz do mendigo ainda cortava o silêncio da estrada, com sua cantiga relembrando, quem sabe, uma mulher , antiga paixão que o deixou naquele estado decadente. Ou por causa de sua miséria não teve chance de participar dos sonhos da amada,como dizia a música.
Olhei pra trás e ainda vi a velha figura com seus trapos, cambaleando, num zigue-zague que não afetava seu vozeirão. Nesse instante, uma nuvem cobriu a lua e o velho bêbado sumiu na escuridão que tomou conta da estrada.
No outro dia, a escuridão mostrou que veio pra ficar. Não houve a nossa reunião. Ninguém veio do Recife, ninguém no Cabo sabia o que fazer. Tanques na rua, o bravo Gregório Bezerra arrastado na rua por uma corda como se fosse um bicho, Arraes prisioneiro no próprio Palácio do Campo das Princesas, Brizola pregando a resistência pela rádio da legalidade, prisões. O Presidente Jango deposto. Começava o golpe militar de 31 de março de 1964.
A noite continuou alta, como na canção do bêbado, mas o céu não era risonho. Era medonho. E a estrada por onde caminhávamos, mais escura ainda.
"Os acontecimentos daqueles dias / ainda estão claros na memória: / fechado no escuro do quarto, / querendo fugir do mundo que me chegava pelo rádio, / eu, pouco mais que um menino, / chorava, como se fosse morte, / a viagem-fuga do Presidente Jango. / Os anos passados, a maturidade / e a visão diária da injustiça e do ódio, / da opressão, da mentira e do medo / me levam agora, adulto, / em nome da verdade e da História, / a reafirmar o menino: / as lágrimas derramadas em 64 / continuam justas." ( Poema de Fernando Brant )
Um abraço para todos que me leram. E a minha saudade, com muita ternura, dos companheiros daquela reunião da jaqueira. Onde comunistas correram com medo de alma e a nuvem, cobrindo a lua, decretou uma noite quase interminável no Brasil.
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