Roberto Menezes*
Jornal Nacional, 28 de abril. Uma notícia curta de Brasília: um homem de cabelos grisalhos, porte altivo, economista, que guardava em casa armas de todos os tipos. E a narração do locutor dizia que José Cândido do Amaral Filho confessou o assassinato a tiros de dois mendigos em Brasília, no dia 19 de janeiro, na mesma praça onde há 12 anos um índio pataxó foi queimado por cinco universitários. O criminoso disse que se sentia incomodado pela presença dos dois mendigos perto do seu prédio. Foi lá e atirou na cabeça dos dois. Notícia curta e grossa, sem nenhum comentário. O JN continua, mas com uma notícia otimista sobre a economia.
20 de novembro de 1995. Muito calor, céu nublado e desde nove horas da manhã, festa em Brasília. E era segunda-feira. Eu estava lá, com um só câmera e a esperteza da jornalista Edna Cristina, documentando a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, Pela Cidadania e a Vida. Uma homenagem aos 300 anos da morte de Zumbi, o líder da resistência à escravidão. Mais de 30 mil pessoas caminhando do Largo do Circular até a Esplanada do Planalto. Cabelos afros, maracatus, capoeiras, gente de candomblé, e toda a força e beleza da raça negra. Era uma coisa que só se via nos grandes comícios populares ou no carnaval da Bahia e do Recife. Carros de som, fantasias, alegria geral.
As condições precárias de filmagem impediam que o câmera sempre estivesse junto de mim. Mandei o câmera Renato Diehl fazer closes e gerais da Marcha e de meia em meia hora ele colaria comigo pra filmar uns planos especiais. No dia anterior, já tínhamos entrevistado lideranças negras, filmado num Salão de Beleza afro e feito algumas cenas no Teatro Nacional com um ator negro.
No meio da loucura, que é filmar uma passeata gigante com uma só câmera por falta de grana, topo com Edésio Alemão. Branco sarará, roupas puídas, sapatos abertos. Mendigo típico de Brasília era um dos mais animados da festa negra. Vez por outra recebia um empurrão dos seguranças negros para não se misturar com a massa organizada. Lá estava o Lula, que ainda não era presidente, de braços dados com Vicentinho e Edson Cardoso, o organizador do movimento. Num dos empurrões, Edésio Alemão veio bater junto de mim e me disse o nome. Cachaça já na cabeça, mas uma surpreendente lucidez nos pensamentos.
Perguntei de onde ele era, disse que de Sergipe. Viu o pai sair "pra ir colher borracha na Amazônia", o paraíso prometido pelo Presidente Getúlio Vargas. Borracha para os pneus dos aviões norte-americanos. Foi à última vez que Edésio Alemão viu o pai. Ele e a mãe ficavam esperando, e nada. A notícia que chegou é que ele pegou hepatite e febre amarela. Morreu no meio da mata. Seca em Sergipe, falta de terra pra plantar, a mãe caminhando com ele, os dois sozinhos, tanto sertão pela frente. Ela morreu quando ele tinha 11 anos. Edésio Alemão Ficou só no mundo.
Gritei pra ele interrompendo a dolorosa narrativa: "Cessa tudo que a antiga musa canta, pois um poder mais alto se alevanta!" Ele me olhou espantado e eu apontei para a Camila Pitanga que ia falar do alto do carro. O nosso câmera encostou e fizemos um belo enquadramento da Camila, linda como sempre, gritando para a multidão:" eu acredito que todos vocês aqui estão sentindo o que eu sinto: o orgulho de ser... negra! Eu tenho orgulho disso! Sou uma negra!”.
A multidão enlouqueceu. Ritmos do Norte se misturavam com o axé baiano e o maracatu pernambucano. Os gritos se tornaram mais forte: "Hoje é dia de negro/ queremos escolas, queremos emprego", "Palmares, Zumbi/ Assim eu resisti!”.
O nosso câmera saiu correndo para filmar um bando de crianças dançando.Puxei Edésio Alemão pra um canto . O nome dele era por causa dos olhos azuis e do cabelo sarará, alourado. Edésio foi adotado por um travesti, de quem mais tarde se tornaria amante. Depois não quis mais e saiu procurando o que fazer no Brasil. Não encontrou. Veio parar em Brasília, já envelhecido. Não sabia dizer a idade. Talvez uns 68 a 70 anos, calculei. Perguntei por que ele estava ali, insistindo em participar. A resposta anotei e guardo comigo. Como lembrança do filme que ia fazer com, ele, e nunca fiz.
-"Isso aqui é o Brasil mudando. O senhor não sabe o que eu, meu pai e minha mãe a gente passou na vida. A gente sabe o que é ser brasileiro. Por isso fico contente de ver gente negra e pobre como eu, um branco enganado pelo Brasil, protestando com a alegria de quem sabe que vai vencer.”.
Pensei no cangaceiro Corisco de Glauber Rocha: “Mais forte são os poderes do povo!" Pensei no pensamento do velho Graça, o grande Graciliano Ramos, que diz em "Vivente das Alagoas”: "talvez nos sobre ainda, por baixo do verniz da educação, aquela energia de Lampião. Apesar da fome e da verminose".
Minha proposta para Edésio Alemão: logo depois de montar o filme da Marcha Negra, fazer um filme com ele. Perguntei onde ele "se escondia". Respondeu: "não me escondo, me mostro. Sou uma ferida que não pode se esconder. Durmo na rua e Brasília tem que me ver, querendo ou não".
Anotei.
A festa negra só terminou quase dez da noite na Esplanada. Eu, Edna e Renato, a equipe brancaleone, estávamos exaustos. Uma lua cheia bonita iluminou Brasília. E de repente formou um halo na cabeça de uma figura que apareceu de repente. Ele mesmo, o Edésio Alemão. Cambaleando de bêbado. cantarolava engrolado a música de Gilberto Gil: :"branco se você soubesse /o valor que negro tem/ tu tomava banho de piche/ ficava negro também ".
Virei pro Renato: filma!Filma!Renato me disse: não tem mais fita e nem temos luz. E Edésio continuou a sua louvação ao Brasil em que ele finalmente acreditava : "somos crioulos doidos/somos bem legal/temos cabelo duro/somos bléque-pau" e agitava os dedos como se mandando uma mensagem de surra.
Passei cinco dias montando o filme, mais um sonorizando e mais um esperando para mostrar ao cliente, o Movimento Negro Unificado. As lideranças negras chegaram com caderninhos para anotar possíveis cortes. Ficaram emocionados e as páginas do caderno sem nenhuma anotação. Na saída da ilha de edição, um deles falou: tira a fala do Lula. Os outros concordaram. Perguntei por que e a resposta foi evasiva: pra ficar um pouquinho menor. Eu disse: "me engana que eu gosto". Eles riram.
E o futuro Presidente do Brasil, que tinha dado uma fala muito boa de braços dados com as lideranças negras, caiu fora do vídeo.
Uma semana depois da Marcha Negra e lá estou eu procurando Edésio Alemão. Rodoviária, Conjunto Nacional, Praça dos Três Poderes. Perguntei: ninguém lembrava ninguém sabia. Voltei à noite. Em que quadra ele teria ido dormir? Passei em frente ao busto de Zumbi. O herói de Palmares nada me disse. Mas o vigia do prédio em frente, sim. Chamou-me e perguntou se eu estava procurando o Alemão. Ele tinha me visto conversando com ele durante a Marcha e estava perto da equipe quando à noite mandei Renato filmar. O mulato Luciano, que trabalhava à noite, curtiu a festa popular o dia inteiro. E viu tudo na Marcha Negra.
Viu também a morte brutal de Edésio Alemão. Eu quis saber de detalhes. Ele disse que se escondeu de medo e viu toda a covardia. Dois brancos, "filhinhos de papai", segundo ele, chegaram num carrão. Um deles ficou olhando o movimento da rua vazia, às duas da madrugada. Edésio Alemão dormia aos pés do busto de Zumbi. O outro branquinho veio e deu um tiro na cabeça do mendigo, que estrebuchou. Saiu correndo e o que estava de vigia foi também pra perto de Edésio e deu outro tiro na cabeça, e outro nas costas. Correram para o carro, onde um motorista esperava. Arrancaram em alta velocidade.
O vigia disse que passou muito tempo tremendo, até criar coragem de ir para o orelhão e avisar pra polícia, sem se identificar. Meia hora depois, chegaram os policiais e recolheram o corpo. Eu disse que não tinha visto em jornal nenhum, embora no trabalho pesado de edição eu mal passava a vista nos jornais. Luciano, o vigia, disse que nem na rádio deu. A polícia se foi com o corpo. Ficou por isso mesmo: é coisa comum em Brasília, disse o vigia. "Foi num foi morre um pobre desses na rua. Não faz falta, né? É menos um na miséria".
Palavras literais de Antonio das Mortes no filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Menos um pra viver nessa miséria.
Olhei a lua minguando sobre a cidade indiferente. Edésio Alemão escapou da morte por subnutrição e das outras doenças tropicais. Veio morrer assassinado aos pés de Zumbi. Não viu o Brasil mudar. Nem nunca ia ver, mesmo se não morresse naquela madrugada.
14 anos depois, nada mais existe do branco que queria ser negro. Mas outros Edésios, brancos, negros, índios, mulatos, continuam morrendo. Assassinados em plena rua. Sem voltar dos sonhos que separavam um dia do outro, sempre igual. E Brasília apodrece. Há muito tempo. Lentamente, sob o sol dos trópicos, essa miss patrimônio cultural da humanidade está morrendo de câncer generalizado. O câncer do preconceito, da corrupção, da mentira e dos conchavos políticos. Tudo isso regado com bons uísques, finos vinhos, e o sangue dos mais pobres.
Este artigo dedico à memória da jornalista Edna Cristina Santos, que idealizou e realizou junto comigo o vídeo sobre a Marcha Negra. Minha grande amiga achou de morrer em Porto Alegre no dia do meu aniversário, há quatro anos atrás. De uma gripe que virou pneumonia.
*Roberto Menezes é Jornalista
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