segunda-feira, 17 de maio de 2010

A MADRUGADA DO HERÓI



Roberto Menezes *

As mãos estavam inchadas. A boca inchada e ferida. Hematomas no rosto. O vendedor de jornal, Manoel Amaro, quase 60 anos, abriu a camisa e mostrou as costas em carne-viva. Foi isso o que aconteceu nos três dias em que andou sumido no Cabo, ainda considerada cidade do interior pelo tamanho e pela dificuldade de comunicação com o Recife.

Olhei as minhas mãos, já menos inchada das pancadas da palmatória da escola. Calça curta olhei os joelhos, ainda, avermelhados por ficar ajoelhado em cima de caroços de milho na frente de todos os alunos. Cecília, colega de turma, 12 anos como eu, foi a causa do castigo. Enquanto a professora explicava a lição no quadro, eu fingia amarrar os laços do sapato, e com um espelho quadrado procurava ver como Cecília era debaixo da saia. Ela me olhava pelo canto do olho como se fosse com desprezo. Mas procurava a melhor posição para que o espelho refletisse. Provocação feminina. Cumplicidade. Vi as coxas roliças e brancas e até a calcinha cor de rosa. Estava absorto no momento de contemplação da maravilha oculta.
De repente, um fisgão forte na orelha me levantou. A professora viu meu movimento estranho, veio caladinha pelo outro lado da sala e deu o flagrante. Fui arrastado até à frente da classe inteira. Três pancadas de palmatória em cada mão. Dona Matilde, a professora, já mantinha um monte de caroço de milho para castigar qualquer um. Fiquei ajoelhado nos caroços, dor no joelho e nas mãos. Um choro silencioso tomou conta de mim. Senti as lágrimas rolando no rosto. Vergonha e humilhação. Alguns risos que logo silenciaram. O medo tomou conta da sala. Levantei a cabeça para olhar Cecília, para ver o quanto de desprezo ela sentia por mim. Encontrei dois belos olhos castanhos, angustiados, e lágrimas de um choro emudecido como o meu. Baixei a cabeça de novo. Dona Matilde disse que eu estava suspenso três dias. E que meus pais iam ser comunicados. Castigo na escola. Surra de minha mãe em casa. E mais: eu ficaria sozinho no fundo do quintal até o anoitecer. Nenhum dos irmãos poderia descer pra brincar comigo. Era o que eu queria. No fundo do quintal, encostei-me na bananeira que tinha furado com um canivete. Minhas lembranças de Cecília se aquietavam ali, naquele buraco na bananeira. Pensava nos olhos dela, nas coxas, na calcinha vista de relance. O balanço lento do meu corpo e o buraco apertado da bananeira me trazia Cecília, sem castigo nem punição.

Quatro dias antes do episódio da escola, do castigo e da surra. Agosto de 1956, dois anos depois do suicídio de Getúlio Vargas. O Cabo não tinha ainda a energia de Paulo Afonso. Era um motor a diesel, que começava a trabalhar às seis horas da tarde e parava a meia-noite.

Passava das duas da manhã e eu, insone já desta época, lia em pé na cama, sob a luz de um candeeiro de querosene. O livro era "O Guarani", de José de Alencar. Devorava, entusiasmado, a trama que envolvia o índio Pery e a branca Ceci. Com uma narrativa, que deixava a gente em suspense entre um capítulo e outro. O quarto onde eu dormia era um só para mais sete irmãos (minha única irmã ainda não tinha nascido).
De repente, batidas na porta de casa. Ouço meu pai e minha mãe falando, meu pai abre a porta, eu saio também pra ver. A voz do lado de fora era conhecida: "Tune (como chamavam meu pai, Antonino) é Manoel Amaro." Meu pai abriu a porta, minha mãe na porta do quarto, apreensiva como sempre, e eu já perto de meu pai. Manoel Amaro apresentou um mulato, alto e de chapéu, coberto com um capote. Manoel Amaro foi direto: "É um companheiro que a gente não conhece. Ele matou Wandenkolk Wanderley de noite. Conseguiu chegar aqui. Precisa de ajuda pra fugir pra Alagoas. Daqui a pouco, a polícia inteira vai estar atrás dele". Wandenkolk Wanderley era um dos mais temidos policiais de Pernambuco. Famoso pela crueldade e pela perseguição incessante e violência extremada contra os comunistas, como delegado e Secretário de Segurança Pública. O homem de chapéu e capote diz que "tinha acabado com a ruindade dele" cumprindo ordens do Partido Comunista.

Agora, já tinha um grupo pequeno em frente à minha casa. Tinham vindo com Manoel Amaro e o desconhecido. Foi de tiro ou de faca? Alguém perguntou. O herói daquela madrugada vendeu seu peixe: "Tiro na testa não erro". Aplausos baixinhos para não acordar a vizinhança.

Eu disse que também ia com o grupo. Minha mãe disse não. Manoel Amaro pediu porque eu ia ser o tesoureiro do dinheiro arrecadado. Meu pai deu a palavra final: Roberto vai. Saímos na rua escura, com um vento frio gostoso e um céu estrelado que acho que nem se vê mais na atual cidade do Cabo de Santo Agostinho.

Manoel Amaro me passou uma sacola de lona, onde ele trazia os jornais. Explicou-me que eu abriria a boca da sacola e o pessoal colocaria dinheiro. Já tinha algumas notas de cruzeiro dentro. Meu pai colocou mais. Manoel Amaro me passou a sacola, com o mesmo gesto solene como me passou o primeiro livro comunista que li: "O Mundo da Paz", que Jorge Amado escreveu sobre a sua viagem à Rússia, dedicado "ao pai Stálin".
Segurei a sacola, com o sentimento de respeito igual quando escutava Manoel Amaro ler pra mim as notícias do jornal comunista Frente Operária.

O ex-operário, semi-analfabeto, me levava aos poucos a conhecer um mundo dividido em classes sociais que nunca poderiam se unir. Os ricos estavam sempre roubando os pobres. E os pobres sempre se revoltando até à vitória final do comunismo. Onde não haveria nem ricos nem pobres. Todo mundo seria igual.

Saímos batendo nas casas das pessoas conhecidas. Gente humilde, classe média baixa, todos sobrevivendo com dinheiro curto. Mas todos colaboraram. Fomos à loja do comerciante Heitor Paiva, que tinha projetos de se candidatar a prefeito. O pistoleiro ficou do lado de fora, oculto no breu da escuridão. Ele nos recebeu no andar superior da loja, onde morava com a família. Dois possantes candeeiros que pareciam lanternas e que lamentei não ter em minha casa para ler na madrugada.
Naquela noite do "homem que matou Wandenkolk", cumpri à risca a minha função de "tesoureiro arrecadador" do Partido Comunista. Abri logo a sacola diante do comerciante Heitor. Ele foi lá dentro, voltou com um pacote de dinheiro e jogou dentro. Lembrei-me do nome "burguês", o que explorava os empregados. Achei que era justo ele ter dado mais. Devia ser o dinheiro que roubava dos empregados, pensava eu já raciocinando como Manoel Amaro. O comerciante reclamou da minha presença. Ele não queria que ninguém soubesse. Não queria envolvimento. Meu pai o tranqüilizou e Manoel Amaro disse que eu já era um companheiro. Menino tímido (ou sonso?), senti que fiquei vermelho com o elogio. A cor certa para o momento. Ninguém notou.
Fizemos à coleta em mais algumas casas e o dinheiro foi entregue ao herói desconhecido, o homem de capote e chapéu. Ele disse que iria até à estrada onde um amigo o esperava num carro para seguir até Arapiraca. Todo mundo apertou a mão dele, parabenizou e desejou boa sorte. O herói da madrugada desceu o Beco da Macaíba para ganhar a pista rodoviária. Eu também me sentia herói. E via também como heróis meu pai e o grupo humilde que nos acompanhava. Madrugada inesquecível!

Manoel Amaro anunciou, enquanto a gente voltava pra casa, que no dia seguinte ia ver a cara do morto. E se possível cuspir nela. Meu pai e outros amigos o advertiram: ele era muito visado, fora preso várias vezes, Wandenkolk o conhecia pessoalmente. E ele comentou que queria ter o prazer de ver o temido delegado estirado, já pronto pra comer capim pela raiz.

Manoel Amaro passou três dias sumido como eu passei três dias suspenso. Mais uma coincidência me unia aos comunistas. Já sabíamos através do rádio que Wandenkolk estava bem vivo. O golpe de "matei Wandenkolk" funcionou bem no isolado Cabo. O herói da madrugada fugiu com a grana dos cabenses. Wandenkolk Wanderley morreu de verdade no dia 11 de julho de 2002. E de morte natural: insuficiência respiratória. Tinha 90 anos de idade.
Naquele começo de tarde, no terraço da minha casa, Manoel Amaro contou que resolvera passar na frente da Secretaria de Segurança Pública, na Rua da Aurora, só pra olhar as caras dos tiras. Topou com dois truculentos agentes que o conheciam de várias greves, passeatas e sessões de tortura. Mais atrás deles, vinha o próprio Wandenkolk Wanderley, vivo e bem disposto. Manoel Amaro foi logo abordado e detido, sem nenhuma acusação. Queriam só saber o que ele andava fazendo. O "morto" deixou recado para os policiais "cuidarem bem do comunista", e entrou num carro grande e preto. Não era o carro funerário como Manoel Amaro esperava.

E tome palmatória nas mãos até virarem bolo de carne. E tome palmatória na boca pra inchar e quebrar os dentes. E tome chicotada nas costas, abrindo feridas em carne-viva. E um balde de água com sal pra que doesse mais. Desta vez não houve o costumeiro banho de fezes e urina.
Todo mundo queria saber como Manoel Amaro se comportou na tortura. O velho jornaleiro, que se orgulhava de não mentir "porque comunista só mente pra não entregar os companheiros" contou que encarou os homens que batiam. Gritava de dor, mas não dizia nada. Cada pancada mais o ódio no olhar aumentava. Olho no olho deles. Depois ficou dormindo no chão da cela até que o soltaram, sem dar qualquer explicação.
Disse pra gente que quando as mãos ficassem boas, ele voltaria a vender jornal. Que ia ler Stalin e Lênin pra ganhar mais força. O pequeno grupo de vizinhos aplaudiu.

Eu, que retornava à escola depois dos três dias de suspensão, voltei correndo do degrau do portão de casa. Entrei no quarto de minha mãe e tirei da gaveta um espelho pequeno dela. Botei no bolso da camisa e fui pra escola de cabeça erguida. Ia ver as coxas de Cecília, e se fosse pego ia apanhar de palmatória e ajoelhar no milho. Mas desta vez de cabeça erguida, olhando, olho no olho, cada um dos colegas. Olhando nos olhos da professora. Olhando nos olhos de Cecília. Eu era um "companheiro", um comunista, ficaria de cabeça erguida na tortura.

Stalin e Lênin iam consolar o meu professor de comunismo. E eu, se fosse espancado na escola e surrado em casa tinha também um consolo certo: o buraco apertado da bananeira, que transformei na tão desejada, quanto inacessível, buceta de Cecília.

*Roberto Menezes é Jornalista, natural do Cabo de Santo Agostinho.

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