segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

MATÉRIA RIMA


Mário Hélio
(ao poeta Natanael Júnior)

cantamos a alegria num dia de angústia
nessa cantoada vã de inquieto som
e fomos toda rica lírica caixa de acústica
quando nada nem ninguém era bom

fizemos todas as flébeis e plásticas
artes humanas com passos e cenas.
imagens escorriam corriam como lágrimas
de todas as películas penínsulas-temas

de todas infantarsias coloridas
passapressendentro documenta do futuro.
(menos caótico) das múltiplas vidas
e o tanto muito após o túnel escuro.

a másc’ra ritualística que
usamos em palco com a pouca
imaginação o mundo que se antevê;
o escudo que não protege; a roupa

que não esconde. onde se condensa a luz
deixada por engano. o resposteiro: fuligem.
bailávamos nos espelhos espantalhos nus
a quando pedra cravava a vertigem.

indefinidos, soltos e finais
sem origem que nous explique, afinal
os não-criadores originais
sermos sombras pastiches d’obra original.

entretanto o enigma não se desfez. a
espada de Janus mostrou-nos que tememos.
a certeza brilha em nós, no entanto lá
dúbia imagem em dúbio reflexo. remos:

meros instrudimentos das mãos. que são as mãos?
artérias, peles, ossos, células, articulações...
e tanto-mais. os sós (desesperados sãos)
ainda andam recriando aparições.

o ser cada vez mais seco e sombrio
o servo cada vez mais menos livre e autônomo.
o verso sorve o som. resta-nos andante con brio
até que o outono chegue e cegue os ânimos antônimos.

e vamos nós, separados em nós.
prosseguimos. poucos querem morrer. a morte
ou sequer o pensamento nos apavora. e a voz?
que faz a voz do artista? oculta o corte

certo. um calor toma-nos o corpo. “Lorca, fazes
o que com os timbres emprestados, restos de prece?”
adoece-os. nenhum fenômeno. porém, crazes
vorazes grifam-se. grafa-se um esse

enorme mergulha na página. como posso ver-me
se o sentido de ver perdeu o sentido e a vista
não avista além do vasto? veste o finito. o verme
sobrevive. com verve capta-o o artista.

temos mesto, o senhor. o prazer se nos seduz
é para que a dor venha depois. a armadilha
é infalível. e o que traduz a tua pretensa luz
se a treva da luz é filha?

o que é doce cedo torna-se acre
e é de cera ainda todo santo.
o vate cumpre em parte o longo encargo,
o resto veta, atáveco. o resto é tanto!

se o fraco possui a força sem cedilha
e em anagrama vertida, os vocábulos
são rimas irmãs sem til. bastava-nos a cartilha
única do escriba para decifrar todos os incunábulos.


(25/01/82)

*Mário Hélio é membro da Academia Cabense de Letras

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