DOUGLAS MENEZES
Dona Coló benzia os meninos com espinhela caída e mau-olhado. O pinhão roxo ficava murcho de tanta mazela que os pequenos possuíam. Mas quem diabo botaria mau-olhado num menino magrinho,pálido e perebento? Dona Coló também pisava no pilão secular e torrava o café de cheiro bom que incensava a rua da Aurora e descia pela rua da Matriz. Sinto hoje, ainda, o gosto daquele cheiro: o pretinho forte que povoava a infância de crianças que caminham hoje para a velhice. Alguns agora de passos lerdos, carregando o peso daquele tempo. Dona Coló tirava mau-olhado. Era mãe de Laura, avó de Carlos e respeitada como uma mãe. Heitor Paiva lutou décadas para ser prefeito do Cabo. Quando conseguiu, renunciou pouco depois, em troca de um emprego na secretaria da fazenda do estado. Isto magoou muita gente, mas diziam todos, era ele um homem sério. Meu padrinho Heitor: deu-me a primeira bola de couro, com a qual jogava no campo da ladeira e no campinho de Benedito. Naquela época, o menino sonhava em ser jogador de futebol, coisa que a realidade tratou de sepultar e fazer a criança adulta entender que no decorrer da existência os sonhos vão sendo enterrados. Talvez fosse ator, cantor, compositor: ”poeta de pouco brilho, pai de família criada”, já dizia o grande Vinícius de Moraes. O menino dormitava nos braços da mãe e ouvia algazarra de gente que descia a Vigário João Batista. Padre Melo fazia mais uma passeata com os seus camponeses. Tempos de agitação, a cidade na vanguarda dos movimentos sociais. Se a criança no colo da mãe não entendia ainda, depois os mais velhos repassaram a história. PadreMelo, polêmico, mas fundamental em nossas vidas. Levou a geração cabense dos anos sessenta e setenta ao debate, a questionar a vida, a politizá-la e olhar a cidade como um ser vivo, questionador e social. O vigário ajudou muita gente, lutou e criou o bairro, quase uma cidade hoje, São Francisco. Contribuiu para a fundação do Abrigo que possui uma das mais belas histórias de solidariedade da Cidade de Santo Agostinho. Não esquecer padre Melo. é não deixar de lembrar esse pedaço que marcou nosso caminho para o desenvolvimento. Professor Daury sacudiu o município: foi candidato a prefeito, perdeu por quarenta e nove votos, não quis recontagem dos votos, seus aliados insistiam que havia fraude e elegante, o mestre aceitou a derrota. A família do menino o apoiou. A criança, mesmo sem entender bem, ouviu a história que o pai, candidato a vice contou. E dizem, o Cabo, nos anos sessenta, deixou de ter um prefeito intelectual e de coração puro. Quatro horas o banho, quatro e meia comprar o pão. Um dia na volta da padaria, já perto de casa, alguém grita: uma bala. Com um martelo, o projétil detonado, a quentura estranha na perna do menino, a bala alojada na coxa. A primeira grande dor, ainda criança. A extração da bala em Recife. O primeiro contato com a violência real. As indústrias chegavam: Coperbo, Brahma, Rhodia. A cidade era só expansão. Começava o final do ciclo de Vicente Mendes, reconhecido pelos mais velhos como um prefeito operoso. Surgia o Ginásio Industrial e a vila Esperança. O menino continuava brincando de artista, barra bandeira, quatro cantos e jogando bola, pensando em ser jogador. Caiu sobre uma lata de conserva e pegou cinco pontos, mais dor para ilustrar a vida. Dona Elzanira era a professora braba, mas boa gente, do grupo escolar Morgado do Cabo, que tinha a porta feito a entrada de um salão de filme faroeste. E o professor Daury tentou de novo e perdeu feio para Zequinha da Bolacha. O Cabo não queria um prefeito intelectual. A mente quer contar mais coisas. Misturada,não consegue articular o que pretende dizer. Bate o sono, mas resiste ainda a memória,em estado de hibernação, imaginando, um dia, talvez, poder falar tudo o que a existência juntou e que teima em se mostrar como cachoeira que desce rio abaixo,sem um rumo certo.
SETEMBRO DE 2009
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