sábado, 20 de outubro de 2012

DA ALMA À METALINGUAGEM

Douglas Menezes*


  Há trinta anos ouvi, encantado, pela primeira vez ,a música “As Vitrines” de Chico Buarque. Algo me dizia que por trás da aparente simplicidade, da melodia fácil de ouvir e de tocar ao violão, e dos versos com palavras simples, havia um estranhamento típico de uma obra literária e musical de valor.
Pois é verdade ser o banal, o comum elemento básico a ser transformado num texto de qualidade. E a história de um homem acompanhando uma mulher pelas ruas da cidade, seguindo-a como a persegui-la não  seria nada que chamasse a atenção como um acontecimento diferente. Mas Chico é gênio, e gênio é aquele que faz do trivial alguma coisa singular.
  Música tema de uma novela da rede Globo, “As Vitrines” passou, pelo menos, seis meses na mídia nacional e, embora popular, não chamou a curiosidade do público para os seus aspectos mais criativos.
  Comecei, então, a sentir uma atração crescente sobre a melodia e a letra dessa música, um dos belos momentos da obra de  chico – difícil é encontrar um que não seja belo. Na verdade, o primeiro aspecto curioso da obra diz respeito ao distúrbio psicológico do eu lírico: um voyeur. Um obsessivo perseguidor da amada. Tara recheada de imagens poéticas belíssimas, como ao final da música, quando o perseguidor, quase vencido declara: “Passas em exposição/ Passas sem ver teu vigia/ Catando a poesia / Que entornas no chão”. E toda a música é um jogo de espelhos pela  cidade, num  constante ir e vir obsessivo. O mundo conturbado do personagem narrador é exposto por expressões que mostram o desequilíbrio existencial, a confusão de sua mente expressa por imagem textual que liga conteúdo e forma: “Na galeria, cada clarão/ É como um dia depois de outro dia/ Abrindo um salão...” . E esse descompasso fica claro em verso anterior  ao citado,  quando a forma, de novo, serve ao conteúdo confuso do comportamento do voyeur: “Nos teus olhos também posso ver/ As  vitrines te vendo passar”. As vitrines adquirem comportamento humano, personificação confirmando  a visão distorcida da personagem, a mente embotada, sem comando razoável, numa imagem colorida e poeticamente perfeita .  Interessante notar que, a todo momento, o eu-lírico busca um diálogo com o objeto do desejo, sem conseguir, no entanto: “Olha pra mim,/ Não faz assim,/ Não vai lá não...”. ao tentar a interlocutora,  sem conseguir, ele  acentua  seu  monólogo, sua solidão total, que de resto é a soledade do homem da cidade grande.
   Mas não para por aí, a genialidade de Chico. Ao colocarmos o poema à frente de um espelho  uma parte dele se transforma numa outra poesia. Texto projetando outro texto, metalinguagem pura. Observe que o reflexo do poema original se transfigura
Em outro: “Ler os letreiros aí troco/ Embaçam a visão marinha/  Na alegria”, indo aí até o final, como se dentro do espelho houvesse uma outra realidade, distinta da concreta.
   Por fim, na gravação original, ao ouvirmos o último verso, o arranjo expressa sons que nos remetem a palavras despencando, diluindo-se, como um brinquedo infantil formado por letras jogadas ao chão. Tudo, pura obra de arte.


*Douglas Menezes é Poeta, escritor e membro da Academia Cabense de Letras


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