terça-feira, 8 de novembro de 2011

O HOMEM, O URUBU E A MENINA

Roberto Menezes*


”Larga lá e pega aqui. Pra chorar e pra sorrir!” É assim que os camelôs desta sub-capital e os sub –empregados do comércio anunciam a liquidação nas lojas. Os gritos da liquidação geral talvez anunciem as vendas pro natal ou até mesmo pro carnaval. Puta que pariu, o ano passou depressa, já é quase natal. Sol sobre a lama : maré baixa, o rio expondo a podridão. Aqui as garças são urubus famintos. Agora junta o mau cheiro desse rio com a caretice desse povo: a cidade é insuportável. E tu bate de frente com um urubu.Ou melhor, o urubu bateu de frente contigo. Na verdade, tu esbarrou com o mendigo que lutava com o urubu. A ave e o homem disputavam o bife que veio junto nas sobras de um restaurante do centro da cidade. O mendigo, socialmente liquidado, encontra a sua liquidação: um bife de graça. E urubu nenhum ia tomar a sua oferta do dia. O mendigo provou que é esperto : disputou a carne no lixo com o urubu, igual as donas de casa quando avançam sobre produtos em liquidação.Esse mendigo podia dar palestras para mulheres que gostam de disputar liquidação de lojas e supermercados. Mas falta a este povo feeling e espírito empreendedor para se meter em consultoria. E agora? A festa acabou, o sonho acabou, a revolução virou palavrão, e você está só , sentado nesse banco de praça com o olhar fixo no velho sobrado, hoje uma movelaria quase falida. Cuidado, cara. A polícia na praça já está te olhando. Daqui a pouco, te mandam ficar em pé, fazem a revista, pedem documentos com a arrogância do soldado amarelo de “Vidas Secas”, aquele romance de Graciliano Ramos. ”Quem é você, aparecido ?Está esperando a droga?” Tu sabe que pode dar nisso . Tu sabe que idoso agora é suspeito de ser “mula”de traficante. E não fala que estás ali pensando na menina que morava no sobrado, aquela Clarice que nasceu na Rússia e adorava o carnaval do Recife. Pra ela, nos seus dez anos de idade, uma felicidade clandestina que repartia em longas conversas com as vendedoras de tapioca e os vendedores de mel de engenho. Menina estranha, hein,cara? Preferia comer maçã no escuro porque ficar no escuro era ficar perto do coração selvagem que já sentia pulsar dentro dela. E esse coração, sabia ela, trazia nele um misterioso aprendizado dos prazeres da vida. Mas não conta a ninguém que você espera ver a menina neste quase fim de tarde:uma aparição,uma epifania. Muito menos fala sobre o aprendizado dos prazeres .Policial é bronco e bronca:: nesse vacilo tu sai preso como pedófilo. Tu vira manchete de jornal e noticiário de TV. Tu não vai ser perdoado por nenhuma classe social. Olha, cara, dois policiais estão vindo na tua direção. Talvez seja muito tarde pra sair correndo. Respira fundo, puxa os teus documentos e não diz nada sobre a menina. Fica com Clarice Lispector dentro do teu coração como ele é : sofrido, perdido, covarde.


*Roberto Menezes é jornalista

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