Douglas Menezes*
Faz mais de quarenta anos que Chico Buarque gravou a
canção Umas e Outras e, apesar do tempo, ela continua com a mesma atualidade
humana da época em que foi lançada. Ali, Chico, um artista ainda em
busca de afirmação e já tendo problemas com a censura da ditadura militar,
mostrava ao país a tendência de uma obra tão vigorosa artisticamente como
igualmente forte em relação ao conteúdo humanístico. Além disso, confirmava ao
Brasil que sua música não se detinha apenas a questões políticas, mas que
abrangia o humano, naquilo que os seres têm de mais importante: o sentido da
existência aqui na terra.
O encontro de uma freira e uma prostituta numa rua da cidade é um dos
pontos altos do fazer musical do compositor carioca. E a possível antítese
contida no poema, paradoxo mesmo, dilui-se, no desenrolar do texto, à
medida em que a identidade entre as duas se afirma: ambas sofrem com
as frustrações da existência. Ambas olham-se com o mesmo olhar que a vida vazia
e angustiada trouxe para elas: “ O acaso fez com que essas duas / Que a sorte
sempre separou/Se cruzem pela mesma rua, olhando-se com a mesma dor”.
Na música, a evidência de que nas duas não existiu escolha. O recato forçado da
religiosa, “Se uma nunca deu sorriso, que é pra melhor se
resguardar”, corresponde, também, ao sorriso artificial da prostituta, “Se a
outra não tem paraíso,/não dá muita importância não / Pois já forjou seu
sorriso / E fez do mesmo profissão”. O destino traçou para as mulheres o elo de
ligação que faltava para que tivessem algo em comum: a vida é um fardo pesado
para carregar e trata de juntar a todos numa mesma dor.
Assim, a infelicidade não escolhe a quem “contemplar”. A religião, na verdade,
é vista como uma fuga. O paraíso é algo incerto e talvez infernal, já que o
“céu” não foi uma opção individual, mas vindo de fora para dentro, arrastando,
tormenta sem fim, qualquer possibilidade de uma vivência feliz aqui no plano
terreno. As duas, vítimas do todo social. As duas vendendo-se para poder
suportar o viver. E cada uma a seu modo: “E toda santa madrugada / Quando uma
já sonhou com Deus/ A outra triste namorada / Coitada, já deitou com
os seus”.
*Douglas Menezes é escritor, professor
de Língua Portuguesa, pós-graduado em Literatura Brasileira e em Leitura,
Compreensão e Produção Textual pela UFPE, membro da Academia Cabense de Letras.
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