Há trinta anos ouvi, encantado, pela primeira
vez ,a música “As Vitrines” de Chico Buarque. Algo me dizia que por trás da
aparente simplicidade, da melodia fácil de ouvir e de tocar ao violão, e dos
versos com palavras simples, havia um estranhamento típico de uma obra
literária e musical de valor.
Pois é
verdade ser o banal, o comum elemento básico a ser transformado num texto de
qualidade. E a história de um homem acompanhando uma mulher pelas ruas da
cidade, seguindo-a como a persegui-la não
seria nada que chamasse a atenção como um acontecimento diferente. Mas
Chico é gênio, e gênio é aquele que faz do trivial alguma coisa singular.
Música
tema de uma novela da rede Globo, “As Vitrines” passou, pelo menos, seis meses
na mídia nacional e, embora popular, não chamou a curiosidade do público para
os seus aspectos mais criativos.
Comecei, então, a sentir uma atração
crescente sobre a melodia e a letra dessa música, um dos belos momentos da obra
de chico – difícil é encontrar um que
não seja belo. Na verdade, o primeiro aspecto curioso da obra diz respeito ao
distúrbio psicológico do eu lírico: um voyeur. Um obsessivo perseguidor da
amada. Tara recheada de imagens poéticas belíssimas, como ao final da música,
quando o perseguidor, quase vencido declara: “Passas em exposição/ Passas sem
ver teu vigia/ Catando a poesia / Que entornas no chão”. E toda a música é um
jogo de espelhos pela cidade, num constante ir e vir obsessivo. O mundo
conturbado do personagem narrador é exposto por expressões que mostram o
desequilíbrio existencial, a confusão de sua mente expressa por imagem textual
que liga conteúdo e forma: “Na galeria, cada clarão/ É como um dia depois de
outro dia/ Abrindo um salão...” . E esse descompasso fica claro em verso
anterior ao citado, quando a forma, de novo, serve ao conteúdo
confuso do comportamento do voyeur: “Nos teus olhos também posso ver/ As vitrines te vendo passar”. As vitrines
adquirem comportamento humano, personificação confirmando a visão distorcida da personagem, a mente
embotada, sem comando razoável, numa imagem colorida e poeticamente perfeita . Interessante notar que, a todo momento, o
eu-lírico busca um diálogo com o objeto do desejo, sem conseguir, no entanto:
“Olha pra mim,/ Não faz assim,/ Não vai lá não...”. ao tentar a
interlocutora, sem conseguir, ele acentua
seu monólogo, sua solidão total,
que de resto é a soledade do homem da cidade grande.
Mas não para por aí, a genialidade de Chico.
Ao colocarmos o poema à frente de um espelho
uma parte dele se transforma numa outra poesia. Texto projetando outro
texto, metalinguagem pura. Observe que o reflexo do poema original se
transfigura
Em outro:
“Ler os letreiros aí troco/ Embaçam a visão marinha/ Na alegria”, indo aí até o final, como se
dentro do espelho houvesse uma outra realidade, distinta da concreta.
Por fim, na gravação original, ao ouvirmos o
último verso, o arranjo expressa sons que nos remetem a palavras despencando,
diluindo-se, como um brinquedo infantil formado por letras jogadas ao chão.
Tudo, pura obra de arte.
*Douglas Menezes é Poeta, escritor e membro da Academia Cabense de Letras
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