DOUGLAS
MENEZES
AS
VITRINES – CHICO BUARQUE
Eu
te vejo sair por aí / Te avisei que a
cidade era um vão / Dá tua mão / -Olha pra mim / - Não faz assim / - Não vai lá
não / Os letreiros a te colorir /
Embaraçam a minha visão / Eu te vi suspirar de aflição / E sair da
sessão frouxa de rir. / Já te vejo brincando gostando de ser / Tua sombra a se
multiplicar/ Nos teus olhos também posso ver / As vitrines te vendo passar
/ Na galeria / Cada clarão / É como um
dia depois de outro dia/ Abrindo um salão / Passas em exposição / Passas sem
ver teu vigia / Catando a poesia / Que entornas no chão.
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O texto
“As Vitrines”, letra e música de Chico Buarque, pode ser inserido, dentro da música brasileira, como
uma canção popular e, ao mesmo tempo, um poema concreto, além de um romântico
exercício de voyeurismo, estranhamente concebido, também, como um jogo, uma
prática lúdica, tornando-o uma das produções mais criativas de Chico.
Toda “As Vitrines” nos leva a um mundo de
espelhos de reflexos mágicos, uma viagem a princípio confusa, um labirinto de
vidros e figuras geométricas, que depois de penetradas, desvendadas em todas as
suas nuances, vislumbra-se um texto coeso e coerente, dentro da proposta do
autor, brincante das palavras, de esgotar as possibilidades semânticas dos
vocábulos, dando volume aos significantes e significados do texto. Uma
inesgotável capacidade criativa refletida na formação de outro poema dentro da
poesia mãe.
A atitude patológica do eu lírico,
obsessão, perseguição desesperada a um ente amado , torna-se uma viagem a um
mundo subjetivo de sonho. E o que se prenunciaria como um conto de mistério,
terror e suspense, filme policial é, na essência, uma declaração de amor. Um
amante tímido, sem coragem de declarar-se, escolhendo a perseguição oculta como
forma de expressão maior e, ao contrário dos criminosos esquizofrênicos das
narrativas policiais, o nosso voyeur acaba causando-nos simpatia, nos poucos
mais de três minutos da música.
No entanto, é também objetivo deste
trabalho, analisar os elementos que levam
à `textualidade da canção.
Antes, porém, é preciso justificar o porquê
de chamarmos de poema concreto a música do compositor carioca. Na verdade, só
podemos confirmar isto se dispormos o texto, a letra da música de forma
normal, de cabeça para baixo e de trá
para frente. Aí, tem-se a ideia de ver-se múltiplas imagens refletidas nas
vitrines, formando um retângulo que nos remete a uma loja, de uma vitrine ou de
uma cadeia de estabelecimentos de vidro. E a ocupação desta maneira no papel
caracteriza o poema-concreto. Domina, aí, a noção predominante do significante:
som da música e imagem evocadora do ambiente em que circula o alvo da
observação.
Salta, então, aos olhos, ao analisarmos
atentamente a letra da música, uma unidade de sentido enorme. Uma coerência de
significados mantidas do início ao fim. Ao descobrirmos o voyeur, suas
intenções, descortinamos, ao mesmo tempo, a linha sequencial da significação, e
por ser um texto literário, essa coerência se dá a nível de linguagem figurada
e na ampliação da capacidade semântica dos vocábulos. Seria bom lembrarmos que
a coerência implica conhecimento prévio por parte do leitor receptor a respeito
de como se configura um escrito de característica literária. Sem esse conhecimento,
impossível buscar ou encontrar coerência em um texto. Assim, passeemos pela
linguagem conotativa, cuja presença nos traz a primeira grande diferença entre
o não literário e a escritura artística.
A primeira metáfora surgida nos sugere o
domínio que o objeto amado possui da cidade: “Te avisei que a cidade era um vão
da tua mão”. Depois, um hipotético diálogo, que só existe na confusa mente do
voyeur: “Da tua mão, / Olha pra mim / Não faz assim / Não vai lá não”.
Entretanto, ela continua, indiferente, o seu percurso pela cidade. Resta ao eu
lírico, acompanhá-la. Aparece, a partir daí, outra figura, a Personificação: “Os
letreiros a te colorir / Embaraçam a minha visão”. Neste verso, a clara
intenção do poeta em tornar opaco, sem nitidez, todo o drama do personagem
perseguidor. Imagem belíssima aparece logo abaixo, onde os olhos do objeto
amado ao invés de virem as vitrines, ocorre justamente o contrário:“Nos
teus olhos também posso ver/ as vitrines
te vendo passar”. Prosopopeia bonita, além de imagem criativa, ampliando e
aprofundando a conotação e a capacidade semântica das palavras. Na sequência,
surge uma Comparação, enriquecida caso fosse transformada numa Metáfora: “Cada
clarão é como um dia. No entanto, isto não compromete a literariedade do texto como um todo.
O trato especial dado à linguagem nos
remete à constatação de que todo o processo conotativo serve, sobremaneira, ao
aspecto da coerência. Imagens e figuras juntam-se para confluírem a um mesmo
objetivo: dar sentido ao conteúdo do texto. E com certeza, esse alvo é
atingido, à medida em que o “voyeurismo romântico” aparece como temática básica
da canção, além do sentido de poesia concreta aqui já citada, tendo neste
ponto, uma outra possível interpretação dessa “concretude”. A configuração
gráfica da letra no papel pode nos dar ideia de que a própria poesia se
desmantela, num desespero do “vigia”: Passas em exposição / Passas sem ver teu
vigia / Catando a poesia / Que entornas no chão”.
E para ilustrar a marcante coerência do
texto e afirmando a escolha do título, ao colocarmos o poema frente a um
espelho, encontramos uma nova poesia, a
imagem refletida torna-se um outra realidade. A escrita virtual, fruto da
genialidade de Chico, expressa-se assim:
“Ler os letreiros aí troco / Embaçam a visão marinha / Vi tuas fúrias e
predileção/ Errar, sisuda, sã, fora dos
eixos / Doce vento, grandes beijos do jantar / Um militar saber tuas poucas /
bem postos meus veros antolhos /
Patinavas, sorvetes, diners / na
alegria o cara do clã/ Um doutor doido me cedia poesia / Um absalão rindo /
Pião, sexo, asa, espaço / és supita virgem avessa / A asteca do piano / Quão
sonha no Center”.
Observe que o outro texto surgido do
reflexo do espelho, representa a caoticidade,
a angústia do voyeur ou vigia. É o mundo desintegrado, tal qual o de
Luís da silva, de Graciliano Ramos. Esse surrealismo de fato torna-se plausível
com o doentio mundo mental do eu lírico. Um subconsciente incoerentemente
coerente (rima proposital).
A partir daí, analisemos outros
aspectos que contribuem para a textualidade do poema.
Um deles é a intencionalidade. Um item
que tem muito a ver com o diálogo entre emissor e receptor, pois embora
saibamos que a intencionalidade é prerrogativa do produtor do texto, no caso, o
leitor ouvinte vai reconhecer esse elemento. No instante em que interpretamos
“As Vitrines”, como exercício obsessivo de um voyeur perseguindo sua amada
através da cidade e fazendo brincadeiras em um labirinto de espelhos,
vislumbramos, também, a intenção de Chico, em expor no conteúdo essa mesma
visão. O jogo lúdico é a visão quase infantil do eu lírico com relação ao
objeto amado, fazendo essa intencionalidade parte do todo coerente da música. A
descoberta da intencionalidade é algo complexo pois não se trata de um
depoimento explícito do autor, mas uma
intuição de quem analisa e, sobretudo, um aprofundamento, um mergulho nas
entranhas do texto.
Da mesma forma aparece a Aceitabilidade,
numa relação estreita com a “intenção”. E aí, no caso da obra em foco, essa é
função é exercida plenamente por haver um certo grau de conhecimento literário
por parte do receptor. Mas, além de se ter um domínio teórico de
Literatura, torna-se importante conhecermos algo sobre psicologia e,
retornando ao literário, elementos da narrativa e, lógico, de Linguagem
Figurada.
Outro fator de textualidade encontrado na
canção diz respeito à Situacionalidade. O ambiente da música combina bem com
seu conteúdo. Uma cidade grande, uma rua comercial ou galeria que dão suporte e
condições para situarmos o tema. Esse fator nos afigura particularmente
importante, já que não bastariam os aspectos psicológicos do “vigia”, suas
ações, seu romantismo e a indiferença do objeto alvo, se não soubéssemos onde
se dão os acontecimentos expressos. Não haveria compreensão temática sem o
ambiente, a Situacionalidade.
O fetichismo ou sua parte patológica
acompanha a história da humanidade. As perversões de qualquer ordem, por outro
lado, sempre foram conteúdos da Literatura,
através dos tempos, estão aí, os romances naturalistas que não nos
deixam mentir. As obsessões de todas as formas caminham com o ser humano. E
Chico, em “As Vitrines”, na temática, não foi original. Isto confirma a teoria
da Intertextualidade. Não há escrito adâmicos, totalmente original. O que
existe é um grau maior ou menor de distanciamento. A obra de Chico, no texto em
foco, lembra alguma coisa de Nelson Rodrigues, a ênfase à perversão, ao
comportamento patológico. E mais ainda, retoma o fetiche encontrado em “A Pata
da Gazela”, de José de Alencar, onde o personagem principal possui doentia
obsessão por um pé feminino, e pratica seu voyeurismo em todo os recantos da
cidade. Isto, entretanto, não invalida a obra musical buarqueana, já que esse princípio, o da
intertextualidade, faz parte dos fatores da textualidade. Aliás, podemos mesmo
dizer que o poeta com “As Vitrines” exercita a Intertextualidade interna, ou
seja, a Intratextualidade, pois na música “Até Pensei”, do início de sua
carreira, há um claro fetichismo: um adultério não consumado, pela existência
apenas na imaginação do eu lírico, observador atraído amorosamente por uma
vizinha: “ Junto a mim morava a minha amada / De olhos claros como o dia / Lá o
meu olhar vivia de sonhos e fantasia / E a dona dos olhos nem via / Do lado de
lá tanta ventura / E eu aqui na noite escura a dedilhar essa modinha / A
felicidade morava tão vizinha / Que de tolo até pensei que fosse minha”.
Passemos, então, para os fatores de
coesão, cuja presença, contribui para a compreensão e estabelecimento da
coerência.
De fato, alguns acham ser a Coesão
dispensável na busca da textualidade, isto considerando esse fator como
elemento a nível sintático e de ligação. Sabemos, no entanto, que mesmo aparecendo de modo implícito, ela
estabelece um elo para que o texto torne-se coerente, tenha sentido e esclareça
para o leitor ou ouvinte tudo o que na
verdade o autor quer dizer.
Iniciemos pelo ritmo empreendido no poema.
E já podemos dizer da afinidade entre a coesão e coerência textuais. Quem
conhece a música As Vitrines sente que o andamento lembra algo como uma
espreita, um constante vaguear lento por algum espaço. Um tom de suspense leve.
Recordemos a Intertextualidade numa sequência de ritmo monolítico, com algumas
variações de intensidade, depois voltando à monotonia inicial., indicando
melancolia e um tom romântico.
Observemos, agora, a recorrência ao
pronome TE, indicando a necessidade do voyeur em mostrar-se íntimo da pessoa
observada. Essa recorrência ocorre mais de meia dúzia de vezes, indicando
obsessão, bem ao feitio do conteúdo do texto.
É apropriado, olharmos também,no tocante à
Coesão, o uso do discurso direto, num hipotético diálogo que não existe. O EU
imaginando-se numa conversa com o ente amado,
fruto de sua desintegração mental.
No aspecto da Coesão sequencial, quanto às pro- formas verbais, analisamos a
presença de três situações: a primeira, verbos no presente do indicativo,
mostrando o flagrante, o instantâneo, a ação do momento. Depois, verbos no
passado, como a indicar idas e vindas, na confusão mental. E por fim, a forma
nominal gerúndio, focalizando os atos sendo feitos, numa expressão de
movimento. As mudanças verbais não prejudicam o fator sequencial, pois estas
servem a toda a coerência do texto.
Enfim, Chico produz, ao longo de décadas,
uma obra extremamente criativa e coerente, onde não se esgotam as análises,
sempre havendo algo mais a dizer.Basta ver esta canção em análise, aparentemente
despretensiosa, tema de uma
novela de Tv, mas que carrega um sem número de fundamentos artísticos, tanto na
forma como no conteúdo. Chico parece ser daquela estirpe de artistas cuja a
obra não morrerá nunca, ultrapassa o tempo, desce, sem parar, como cachoeira
rio abaixo ao encontro de um oceano
criativo que parece não enxergar um final.
DOUGLAS MENEZES , FORMADO EM LETRAS E EM COMUNICAÇÃO SOCIAL PELA UFPE. É
ESPECIALISTA EM LITERATURA BRASILEIRA E EM LEITURA, COMPREENSÃO E PRODUÇÃO
TEXTUAL. É PROFESSOR DA REDE PÚBLICA DO ESTADO DE PERNAMBUCO E DA REDE PARTICULAR. MEMBRO DA ACADEMIA CABENSE DE
LETRAS.
DOUGLAS MENEZES. EMAIL:
douglasmenezesnet@gmail.com
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Olá professor, boa noite! Estou fazendo um trabalho em que o professor pede que eu argumente essa canção colocando a função e nível/ registro de linguagem predominante.
ResponderExcluirLi seu post gostei muito mas ainda sinto-me insegura para começar a minha argumentação.
Ótimo domingo!
Magnífica a sua análise! Obrigada por compartilhá-la!
ResponderExcluirMagnífica a sua análise! Obrigada por compartilhá-la!
ResponderExcluirComo você encontrou essa letra invertida ao colocá-la frente ao espelho? Eu tentei e não consegui ver nada disso.
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