Eu invento frases de efeito que aprendi com os mestres. Eu douro as
palavras de modo artificial porque os bancos e os livros me ensinaram. Digo
coisas, às vezes bonitas, legítimas até, mas apropriadas por um conhecimento
adquirido. Ele, não: disse o que eu sempre quis dizer e não soube como. Ele,
natural; ele, voz do povo; ele
enquadrado naquilo que outro poeta falou: “ se a gente sofre, ele
sente”. Aridez da vida transformada em ternura. Na poesia, a terra seca chega a
parecer molhada, mesmo expressando a dor maior da sobrevivência.
Vi de perto um dia, muito tempo faz, jovenzinho ainda. Ele junto,
atencioso. Ele respondendo as perguntas, paciência de Jó
Quando soube que não éramos jornalistas,
brincou, fingindo severidade: “vocês são uns nojentos” e depois riu aquele riso
sertanejo, forma carinhosa de falar que estava só brincando. Depois, a missa,
os vaqueiros perfilados, a fé maior,o canto inconfundível ecoando na imensidão
do mundo do interior. Contrita aquela gente, ouvindo a voz que ela conhecia tão
bem, famosa e, ao mesmo tempo de uma simplicidade comovente. Deus ali, também
refletindo por que tanto padecimento, já que aquele povo acreditava tanto Nele.
A missa nordestina com charque e rapadura, e a música dele, misturada a toda a
paisagem dessa Palestina brasileira.
Na poética, a sensibilidade nata, as personificações nunca esquecidas,
de emoção à flor da pele? “ Quando vivim cantou / Corri pra ver você / Atrás da
serra o sol tava pra se esconder / Quando você partiu / Eu não
esqueço mais / Meu coração amor/ Partiu atrás”. Ou o jogo de palavras do ABC DO
SERTÃO, com a defesa da língua sertaneja, do sotaque que faz a diferença e
reafirma a personalidade própria. Aliás, décadas vivendo no sul e nunca mudou o
modo de falar, criticando aqueles que macaqueavam, que perdiam a identidade,
imitando o sulismo, mesmo com pouco tempo naquela região.
Toda uma vida dedicada a analisar musicalmente a sociologia de um povo.
O amor, a natureza, as cidades, as serras, as paisagens diversas, as festas, os
personagens, as injustiças sociais, a dignidade do nordestino sempre ultrajada
até hoje. Conseguiu, como poucos, unir forma e conteúdo. Sem conhecimento
histórico, expressou na obra, na melodia,
a origem Ibérica e do Oriente Médio da música nordestina.
Telúrico em toda a trajetória. Chão de terra batida, cheiro e mato seco,
uma voz de quintal ouvida em todo canto: “ vem ver quanta fogueira / No
terreiro embandeirado,/Foguetes e balões/ Sob o céu todo estrelado / Namoro à
moda antiga / Com suspiro ao luar /Vem ver coisa bonita / São João no arraiá”.
Sim, faço frases que a escola ensinou a fazer. Ele ganhou a elite
pensante com o pulsar de uma poesia vindo do coração e do músculo sensíveis, no
entanto. Passou por todos os temas
possíveis. Gente de peso da arte nossa rende-lhe até hoje homenagens. Cem anos
que vão ser centenas, com certeza. Pois arte maior não morre nunca. Discípulos
estão aí, bons ou maus, perpetuando seu legado. Os pés-de-bode continuarão animando
as festas da cabroeira que tanto ele amava. Agora, também o ano inteiro.
Pois é, o casal olha no céu deste junho a lua redonda, que insiste em
ficar entre as estrelas. Lua gorda, morena escura. Ele olha de cima, risonho,
feliz, vendo ainda algumas fogueiras brilhando lá embaixo na terra. Lua feliz
olhando, com alegria de menino, ouvindo o som que ele deixou. E mais ainda, a
confirmação de que, mesmo com a tirania do tempo, implacável com o destino
humano, o seu povo não o esquecerá jamais.
*Douglas Menezes é da Academia Cabense de Letras.
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